A deficiência mental no imaginário social:
termos, imagens,
conceitos, definições e classificações.
Waldir Carlos Santana dos Santos
http://walsantanapsicologia.weblogger.com.br/weblog_20020428.htm
Historicamente, as
deficiências - à exemplo de outros fenômenos que suscitam fortes emoções - têm
gerado as mais variadas noções, concepções, visões, metáforas, imagens,
conotações...
Os termos utilizados para designar as pessoas com deficiências, além de apresentarem, de
modo geral, um significado negativo, não correspondem, necessariamente, às reais
condições dessas pessoas. São denominações que dão a idéia de perpetuidade, não
dando espaço para a esperança quanto à modificação das condições do indivíduo.
Trata-se de substituir a pessoa por sua circunstância.
Existem termos inconvenientes por causa das conotações adquiridas em seu uso. Por
exemplo: idiota, imbecil, tolo etc.
Uma das áreas mais férteis para a difusão de imagens negativas da deficiência é a
arte. Freqüentemente, os maus dos contos infantis, das novelas, dos filmes e dos desenhos
animados são sujeitos com algum tipo de deficiência. Esta tendência possibilita
interpretações as mais variadas. Uma interpretação imediata é aquela que relaciona a
deficiência à frustração, e esta à agressividade ou à maldade. Em um nível mais
profundo, numa interpretação mais analítica, a classificação pode ser vista como uma
tentativa de se afastar o risco da deficiência situando-a naqueles indivíduos
considerados estranhos ao padrão de normalidade instituído, no qual pensamos nos situar.
A atribuição de um significado negativo às situações de deficiência se dá muito
explicitamente quando empregamos suas denominações para insultar ou repreender. Neste
uso aparece clara a função agressiva ou repressiva. Ao insultar ou repreender associando
um indivíduo ou conduta a uma deficiência, estamos exorcizando-a, tentando afastá-la.
Os meios de comunicação social estão repletos de apreciações comiserativas gratuitas.
Neste caso específico, as próprias instituições prestadoras de serviços
especializados muito têm contribuído; basta recordarmos as várias campanhas veiculadas
na televisão, onde, invariavelmente, o sujeito com deficiência é apresentado em seus
aspectos mais limitantes, como estratégia para sensibilizar o telespectador a prestar sua
contribuição financeira, para a manutenção dos serviços especializados que lhe são
prestados. Na maior parte dos casos a compaixão tem como pressuposto a infelicidade do
sujeito com deficiência, uma vez que o situa numa posição inferior: a dos protegidos ou
protegíveis. A este propósito, nossos textos constitucionais não fogem a esta regra; um
exame superficial das nossas constituições federal, estadual e municipal (São Paulo),
é suficiente para a confirmação desse fato.
A piedade e a misericórdia geram exclusão da condição humana plena. Da mesma forma, a
exaltação de certas aquisições ou conquistas desses indivíduos - como pintar um
quadro, alfabetizar-se, fazer "ponta" numa telenovela - cumpre a mesma
função.1
Penso ser inconveniente a apresentação da deficiência privilegiando o fato em si,
desconsiderando-se sua prevenção, assim como os atendimentos mais adequados e a
possível inclusão desses sujeitos. A ciência e a técnica estão logrando diminuir a
ocorrência de nascimentos de pessoas com deficiência mental, assim como têm
possibilitado a leitura de textos convencionais aos cegos e permitido que pessoas com
deficiências físicas dirijam automóveis... Questiono, entretanto, até que ponto esses
avanços não representam, pura e simplesmente, a manifestação sutil de uma tradicional
consciência fatalista, que se baseia no também tradicional binômio
resignação/subsídios.
Ao comentar sobre os cartazes publicitários sobre a deficiência mental que,
invariavelmente, trazem a figura de um sujeito com Síndrome de Down, preferencialmente
sorrindo, Demétrio Casado (1991), afirma que ...as versões doces das situações de
deficiência servem para aliviar o temor e o rechaço que a mesma inspira, sendo,
portanto, ...uma forma de nos protegermos de nossa própria angústia ante o risco do que
percebermos como um mal. Também estamos propiciando a aceitação dos sujeitos da
deficiência por parte de uma sociedade com uma tradicional disposição restritiva.
(p.45).
Em meu cotidiano profissional é comum ouvir relatos de familiares que atribuem às
pessoas com deficiência mental a característica de infantilidade. Tenho observado, nas
mais diversas situações, que essa "imagem infantilizada" costuma vir
acompanhada de reações (e ações) que restringem, sobremaneira, as possibilidades de
melhor desenvolvimento desses indivíduos. No caso de pais e familiares a conseqüência
desta representação é a menor oferta de oportunidades para a aquisição de autonomia,
seja pela maior tendência de isolá-los em casa ou instituição especializada, seja pelo
baixo nível de atenção dispensada (quantitativa e qualitativamente falando). Nestes
casos, percebo muitas dificuldades dos familiares em deixarem de comparar seus filhos que
têm deficiência mental com outras crianças ou adolescentes (da mesma faixa etária)
tidos como normais. Esta constante comparação se configura, ao meu entender, como
resistência em aceitá-los em sua condição diferenciada.
Quando em seu artigo 203, inciso V, nossa Constituição Federal garante ...um
salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que
comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por
sua família, conforme dispuser a lei, não estará entendendo a deficiência
enquanto um fator tão limitante que precisa ser recompensado com dinheiro? Ou estará
assumindo sua parcela de culpa? Existem culpados?
O importante é notar que - apesar da aparente justiça social - este artigo contribui
para a reiteração da imagem ligada à impossibilidade, à incapacidade, pois
desqualifica qualquer idéia de incluir esse indivíduo à sociedade através do trabalho
ou participação. É óbvio que isso não está explícito, mas pode suscitar
interpretações como esta e a formação de imagens deterioradas em relação aos
cidadãos que têm deficiência, principalmente mental.
Em função dessas imagens estereotipadas todos os conceitos utilizados para classificar
pessoas com deficiência mental acabaram sempre assumindo uma conotação pejorativa.
Basta mencionarmos alguns deles para confirmarmos esta afirmação: idiota, imbecil, tolo,
retardado, demente...
Em que pese as evidências em contrário, em nossa sociedade associa-se a deficiência à
irrecuperalidade, à incapacidade para o estudo, à incapacidade para o trabalho e a
muitas outras incapacidades. Em virtude disso, nossos cidadãos costumam responder
aceitavelmente aos sucessivos estímulos mendicantes das pessoas em tal condição ou de
seus representantes "protetores". Paralelamente, nossas autoridades persistem em
sua política de preferência aos subsídios em detrimento da reabilitação e de medidas
que possam assegurar (ou ao menos contribuir para) a eliminação das barreiras físicas e
sociais.
* Trecho da Dissertação de Mestrado: "O Difícil Processo de Ressignificação da
Deficiência Mental: Os Profissionais Falam de Sua Prática.
Autor: Waldir Carlos Santana dos Santos. PUC/SP, 1995.